Movimento de Revitalização da Música de Brasília

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segunda-feira, 22 de agosto de 2011

DESINSTITUCIONALIZAÇÃO NÃO É A SAÍDA NOS TEMPOS MODERNOS: UMA BREVE ANÁLISE DO CONTEXTO BRASILEIRO E O POSSÍVEL OCASO DA ORDEM DOS MÚSICOS BRASIL -OMB



Por Fabiano Borges
 
Uma vez que o assunto divide opiniões e causa muita celeuma, resolvi escrever um pouco de minha visão acerca da desobrigação do uso da carteira da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), as consequências e a possível extinção da entidade, cujo assunto polêmico vem sendo aventado por vários músicos do Brasil.

Aparentemente, a maioria concorda que a OMB não foi eficaz para o trabalho dos músicos. Porém, conferir esse caráter de informalidade pode não ser conveniente para vários profissionais da música. Caso análogo ocorreu com o jornalismo, mas muitos profissionais discordaram. Nesse contexto, é possível observar inúmeros problemas implícitos que permeiam toda discussão.
Primeiramente, emerge a seguinte relevante pergunta: o que significa a palavra “profissional”? Há duas formas principais de concebê-la, quais sejam: aquele indivíduo que tira seu sustento de uma determinada atividade e/ou aquele que exerce uma atividade com maestria (menos comum).
Nos tempos modernos, há um desvirtuamento conceitual de uma miríade de palavras. Sem querer questionar o relativismo cultural, observa-se que “músico” seria aquele que possui um instrumento em casa e que consegue extrair sons mesmo que seja apenas nos finais de semana. Quase não há distinção social de um estudioso da música para um leigo[1]. Eis o porquê da difícil tarefa de uma regulamentação profissional no âmbito da música.
Contudo, não quero apregoar que a música erudita europeia seja a única capaz de validar se um indivíduo é ou não um músico. Há músicos populares que seguem tradições culturais seculares muito valiosas, a exemplo do choro (Brasil), flamenco (Espanha), gamelão (Indonésia), chacarera (Argentina), Wayno (Peru) e dentre outros gêneros musicais tradicionais relevantes os quais são desvinculados da tradição essencialmente europeia. Observa-se também que a palavra “artista” foi desvirtuada. Com o advento do Reality show (notadamente com o big brother no Brasil), um artista passou a ser aquele capaz de aparecer na tela da Rede Globo. Assim, é possível ter reconhecimento social como um “artista” de um dia para o outro.
A falta de contextualização e de objetividade conceitual podem perder o foco teleológico da discussão acerca da necessidade de uma entidade de fiscalização do profissional da música. É nesse sentido que se imiscuem visões e perguntas, tais como: por que a OMB não contribuiu para o mercado de trabalho dos músicos? Por que há o pagamento compulsório de anuidade para exercer uma “atividade de livre expressão”? Os músicos realmente precisam de entidade de fiscalização?
Além disso, é comum observar que os argumentos descambam para lados opostos e não há consenso entre os músicos, haja vista a heterogeneidade das atividades musicais e do próprio conceito de “músico”, conforme mencionado. De qualquer sorte, preocupo-me de forma sistêmica com a assunto, pois, afora a regressão social da audição, vejo que estamos caminhando a passos lentos para uma anarquia, uma vez que há ausência de comando.

É bem verdade que uma conscientização social do relevante papel que a arte (incluindo a música) pode exercer na formação de qualquer indivíduo, independente da área profissional, poderia garantir respeito à profissão do músico. Para tanto, é necessário que haja uma educação forte para que se desenvolva senso crítico, mas sem atos despóticos por parte do governo. Porém, essa política extremamente necessária só funcionaria no longo prazo.

A OMB – aparentemente uma instituição única no mundo – atua como nível técnico a meu ver, pois a entidade não exige diploma universitário. Sendo assim, uma pessoa que possui titulação de bacharelado, licenciatura, mestre e doutor em música não corresponde a uma pessoa que possui a carteira da OMB, cuja prova (para músico prático e para músico profissional) não contém exigências tão rigorosas se comparada à exigência de um curso universitário em música. Essas diferenças devem ser levadas em conta para qualquer análise sobre o assunto. Sendo assim, os músicos essencialmente populares são capazes de obter uma carteria de músico prático, embora essa modalidade de carteira seja questionável. Por isso, há pessoas que defendem a continuidade da OMB, mesmo com o fim da obrigatoriedade da carteira de músico.

Convém lembrar que a música não se resume tão-somente em performance, embora os profissionais das música tenham apreço pela atividade performática. O meio acadêmico musical é extremamente amplo, haja vista que o discurso musical possui efetivos diálogos com diversas áreas profissionais, a exemplo da história, sociologia, antropologia (etnomusicologia), física (fenômenos da acústica), linguística, medicina (musicoterapia) e dentre outras áreas.

Um instrumentista costuma passar de 4 a 5 anos em um bacharelado, além de mais 2 anos no mestrado e 4 no doutorado. Além do mestrado e doutorado em performance, há cursos na área de musicologia ou etnomusicologia, cujas atividades chegam a ser incompatíveis com a atividade de concertista. Por isso, observamos uma infinidade de cursos superiores de música no Brasil e no exterior.

No contexto brasileiro, a institucionalização musical pode não ter sido capaz de gerar a valorização do músico. Por outro lado, é necessário lembrar que a OMB foi criada pela Lei 3.857/1960 e, em seguida, tivemos um rigoroso sistema militar que não investiu na área social, retirando a obrigatoriedade de música nas escolas. A propósito, os países vizinhos (inclusive aqueles do Cone Sul) vivem uma situação pior no que concerne ao mercado musical, mesmo sem terem tido oportunidade de elaborar uma lei que contivesse uma proposta similar à Lei 3.857/1960. Logo, o problema, aparentemente, não provém da OMB.

Ademais, há uma questão relacionada ao capital simbólico (conceito do sociólogo francês Pierre F. Bordieu), que pode permear toda discussão. Primeiramente, saliento que a menção ao sociólogo não diz respeito à música formalista ou estética, mas sim à expectativa social em relação à institucionalização da música, como: graduação, mestrado, doutorado e a existência de uma entidade de classe musical. Mesmo que um cidadão não saiba o que o registro de classe e a titulação musical signifiquem, o fato de haver titulação e entidade de classe na área musical pode favorecer o reconhecimento social da música. No entanto, não estou dizendo que isso seja preponderante para que a OMB continue operando da forma que operou durante 50 anos de existência.

A sociedade é, por vezes, guiada por expectativas referentes a uma possível segurança no mercado de trabalho, notadamente numa época de crise mundial. Em virtude da desregulamentação e de ações ulteriores, propagar-se-á um pensamento limitador de que a música serve somente para lazer, perpetuando-se essa ideia retrógrada, notadamente, na América Latina (cuja região possui alta concentração de renda e acentuados desequilibríos regionais). Sendo assim, o ocaso da OMB pode não ser positivo, sobretudo para os jovens que pretendem iniciar uma carreira musical. Nesse sentido, é importante ponderar questões relativas à expectativa social. Ao desregulamentar o órgão que rege a profissão de músico, será que não haveria uma indiferença social para com a música? Mesmo sabendo que o Ministério da Educação (MEC) seja o responsável pela educação (inclusive musical) nas escolas, será que não haveria um descaso com relação ao ensino da música nas escolas num futuro próximo? Percebam que estamos num momento, em certa medida, auspicioso pela volta da música nas escolas, mesmo que seja de forma tímida.
É evidente que a maioria dos músicos gostaria de ser filiada a uma instituição que realmente representasse a classe. É justamente aí que emerge uma discussão sobre a existência ou extinção da OMB por parte da classe musical. Na visão de muitos músicos, a OMB não foi capaz de mostrar sua competência de atuação até o momento. Porém, a possível ineficiência da OMB não significa que a música não mereça ter um órgão de representação e de regulamentação. No que concerne às entidades de fiscalização profissional de uma maneira geral, cumpre assinalar que as entidades de regulamentação de outras profissões tampouco possuem uma aprovação ampla por parte de seus associados.
Minha preocupação sistêmica não reside, apenas, no fato de existir ou não a OMB. A forma pela qual se conduz a discussão é que me preocupa. Chegaremos num momento em que não haverá “música culta” sobretudo nos países periféricos, pois não será possível cobrar pela exibição artística. Nesse terrível momento, que não é tão ilusório, não haveria necessidade de nenhum órgão de fiscalização porque música seria algo apenas para ser veiculada pelos meios difusores de comunicação de massa. Música seria elaborada apenas para as pessoas dançarem e se divertirem após o expediente burocrático.
Portanto, mesmo entendendo que os músicos não querem pagar anuidade para a OMB por se tratar de uma entidade que não estaria atendendo os interesses de classe, a forma pela qual a questão está sendo tratada é no mínimo equivocada e reducionista. Ademais, parece-me ilusória a ideia de criar outra entidade nacional de proteção do músico, caso a OMB seja extinta de fato. Afora a burocratização engessada que procrastinaria a criação de outra possível entidade, a classe é altamente desunida para levar a efeito tal proposta.
QUESTÕES JURÍDICAS E SOCIAIS
O recente julgado do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da inexigibilidade da carteira de músico consiste no fato de que a arte seria livre em conformidade com a Carta Magna. Inclusive, essa é a argumentação constante na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Para entender a questão, faz-se necessária a leitura da Constituição Federal, notadamente dos incisos IX e XIII do artigo 5º (cláusula pétrea):
IX- é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura e licença.
XIII- é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

Para saber se a Lei 3.857/1960 (OMB) fere o dispositivo constitucional, é necessário verificar se a lei continua válida ou não. Se continuar válida, diz-se que a lei foi recepcionada pela Constituição Federal (CF) de 1988. Do contrário, a lei seria revogada porque não há que se falar em inconstitucionalidade superveniente. Duas argumentações do Guardião da Constituição chamam a atenção: a música é uma arte, é algo sublime, próximo da divindade. Tem-se talento para a música ou não se tem... A questão é o mesmo que exigir que os poetas fossem vinculados a uma Ordem Nacional da Poesia. Diante dessa argumentação, a Lei 3.857/1960 (OMB), supostamente, estaria sem amparo constitucional hoje.
Paira a questão: o Estado brasileiro não é laico? Por que se evocou divindade para se discutir a lide? Reiterando meu amplo apreço e respeito pelo Pretório Excelso, acredito que a matéria tenha sido tratada de maneira superficial, sem as possíveis implicações sociais que a música pode exercer sobre a sociedade. A música não diz respeito apenas ao aspecto artístico, mas sim na formação como cidadão como ressaltei alhures. A música, além de constituir e sintetizar a memória de vários povos, demonstra o soft power do Brasil para se afirmar perante o cenário internacional.
Ademais, música não se resume à canção/letra, haja vista que os sons podem sintetizar uma cultura sem fazer menção à escrita. Com todo respeito que devo ao STF e à poesia, percebe-se que a argumentação é reducionista, desconsiderando inúmeras horas de estudo e a visão altamente complexa que a música exige. Portanto, emerge uma questão: por que não se aventa a possibilidade de convocar um representativo grupo de profissionais para compor o amicus curiae (amigos da corte), cuja permissão é aceitável no caso de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Aparentemente, o Pretório Excelso não julga a matéria relevante para que se faça necessária uma convocação dos amigos da corte. De qualquer forma, vale lembrar um brilhante voto do Ministro Celso de Mello que argumentou sobre amicus curiae em 2001, ao mencionar implicações sociais sistêmicas:
... Não só garantirá maior efetividade e atribuirá maior legitimidade as suas decisões, mas, sobretudo, valorizará, sob uma perspectiva eminentemente pluralística, o sentido essencialmente democrático dessa participação processual, enriquecida pelos elementos de informação e pelo acervo de experiências que o amicus curiae poderá transmitir à Corte Constitucional, notadamente em um processo – como o de controle abstrato de constitucionalidade – cujas implicações políticas, sociais, econômicas, jurídicas e culturais são de irrecusável importância e de inquestionável significação (DJ, 02.02.2001)
Ora, a livre expressão da atividade artística preconizada pelo inciso IX do artigo 5º da CF é uma coisa e dedicar-se à música como profissional é outra. A OMB tenta atuar de forma similar a OAB, ao coibir o exercício da profissão em alguns casos. Tal atuação é exemplo de norma constitucional de eficácia contida, o que não fere nenhum dispositivo constitucional a priori. O fato de a OMB estar sendo objeto de ADI e de ADPF no STF é que reside uma questão interessante concernente à forma de como a matéria é tratada, visto que foi argumentado que o exercício do ofício musical não oferece “risco social”.
A OMB fiscaliza a atuação dos profissionais da música e não se a expressão das pessoas por intermédio da música. Logo, à primeira vista, ninguém estaria privado do direito à expressão da atividade artística, não havendo afronta ao artigo 5º da Carta Magna. Dessa forma, a pessoa poderia exercer a arte sem a cobrança de honorários para a exibição artística. Do contrário, com o perdão do exagero, o youtube teria que ser notificado pela OMB.
Segundo a análise recente do STF, as entidades que poderiam coibir o exercício da profissão são aquelas que regulamentam atividades que possam ofecer “risco social”, a exemplo da medicina, engenharia e da advocacia. A propósito, esssas profissões sobremodo corporativistas.

Todos concordam que precisamos de médicos, engenheiros e advogados; mas precisamos de todas as profissões bem executadas para que a sociedade funcione de maneira adequada, dirimindo distorções sociais. Diante do exposto, avento uma questão: a burocratização de profissões que não oferecem “risco social” é desnecessária e/ou nociva? A resposta não é tão simples quanto parece. Para ilustrar, é necessário apontar como está o mercado de trabalho e como opera os órgãos de fiscalização de outras profissões.

Uma pessoa pode conhecer a ciência contábil e será livre para falar com propriedade sobre o assunto. Não obstante, quando se cobra pelo trabalho de contabilista, o órgão de fiscalização (CRC) poderá exigir o registro de classe, balizando o exercício da profissão e valendo-se da norma constitucional de eficácia contida (em conformidade com o inciso IX da CF).
Com efeito, há profissionais medíocres em todas as áreas, inclusive naquelas supracitadas cooporativistas, as quais são sobrevalorizadas pela nossa sociedade cada vez mais apática e inerte ao conhecimento. Nesse sentido, o fato de existir um profissional hipócrita que possa oferecer “risco social”, não o faz perder seu registro de classe, salvo se o caso tomar proporções midiáticas. Vale lembrar que o exame da OAB assegura que o advogado tenha um mínimo de competência profissional, o que difere do fato de formar bacharéis em Direito. O mesmo ocorre com a medicina e a engenharia. Ora, desconsiderar um órgão fiscalizador da profissão de músico, poderá perpetuar o pensamento retrógrado de que a música cumpre o simples papel social de animar festa. Perpetuar-se-á o seguinte diálogo: “Você é músico? Mas em que você trabalha?”.
Nesse sentido, colocarei uma situação extrema. Há cursos conexos e análogos às três supracitadas profissões corporativistas. O fato de que um biomédico (competente) não possa clinicar como um médico e de que um matemático (competente) não possa assumir a responsabilidade de um engenheiro deve-se, essencialmente, à falta de conhecimento técnico ou à fiscalização de um órgão de classe? O fato de um indivíduo com notável saber jurídico (que não seja bacharel em Direito) não poder dirigir um Mandado de Segurança (MS) a um juiz deve-se à falta de conhecimento jurídico ou, no fundo, por exigência de órgão de classe? Quanto à atuação no mercado de trabalho, é possível observar engenheiros que dão aula de economia sem ter o diploma em economia. Há pessoas com aptidão em matemática (mesmo sem titulação) que são capazes de sanar dúvidas de engenheiros sobre construção de prédios. Evidentemente, isso não desobriga o registro de classe dessas profissões. Diante do exposto, a existência de entidade de classe parece não estar, estritamente, relacionada à questão de “risco social”, pois há uma questão relativa ao mercado de trabalho sobremaneira relevante.
Propaga-se uma crítica de que a OMB seria a única entidade de classe musical (com suas características pecualiares de fiscalização) no mundo. No entanto, isso, não necessariamente, significa algo ruim como costuma se apregoar. Vale lembrar que o sistema de votação brasileiro é tão eficaz que serve de modelo para o mundo inteiro. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por sua vez, é uma entidade única no mundo pois é capaz de conceder fomento e de realizar avaliação de cursos pós-graduação. Mesmo assim, o mundo reconhece o valor dessa instituição brasileira vinculada ao Ministério da Educação (MEC). Por que não seria possível realizar a mesma coisa com uma instituição de classe de músicos? Portanto, a justificativa do “risco social” não é satisfatória para responder a questão.
É ilusão achar que sindicato e cooperativa poderão resolver o problema, com o intuito de regular as atividades de músicos brasileiros. Para ilustrar, já propuseram linhas diversas de atuação musical no âmbito acadêmico, tais como: ABEM (Associação Brasileira de Educação Musical) e ABET (Associação Brasileira de Etnomusicologia). Porém, até hoje não existe uma Associação Brasileira de Musicologia, mas sim a Sociedade Brasileira de Musicologia (SBM). Existem muitas associações, mas há muita fragmentação no meio musical e sempre haverá. É difícil levar a cabo uma proposta sistêmica. A volta da música nas escolas é o mínimo de esperança para a classe musical, porém, os resultados são morosos. Eis o porquê muitos profissionais que executam a música com maestria têm receio de ter a música como profissão exclusiva, preferindo até optar por um trabalho burocrático.
Vale ressaltar que há inúmeras escolas de músicas e conservatórios nos rincões do Brasil, razão pela qual é possível ter acesso a este tipo de conhecimento musical desde criança. Por isso, é possível ser músico razoável mesmo sem ter seguido um curso universitário em música. O mesmo não ocorre com o Direito. A propósito, alguém conhece alguma escola no Brasil que ensina a disciplinas jurídicas no primeiro e segundo grau? No mínimo, parece que existe alguma distorção e algum dispositivo capaz de cercear o acesso ao conhecimento jurídico, mas isso é outro aspecto, cujo assunto demandaria uma enorme digressão sobre o tema.
INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MÚSICA: CONTEXTUALIZAÇÃO E A SITUAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO
O ensino da música nas escolas foi banido no período militar em que o governo queria legitimar-se pelo desenvolvimento econômico, relegando a área social. Sendo assim, Geisel – prevendo a perda de legitimidade do governo em decorrência da crise do petróleo de 1973 ­– aventou a abertura lenta, gradual e segura.
Quando a OMB foi criada até o fim da ditadura, os sucessivos governos militares apoiaram-se em um crescimento econômico que era ilusório, pois a crise internacional do petróleo de 1973 mostrou-nos que o Brasil não dispunha de fonte de energia para levar a cabo o crescimento econômico, aprofundando mais ainda as mazelas sociais e o descaso para com a música. O desvirtuamento da finalidade da regulamentação deu-se em virtude da conjuntura sócio-econômica ao longo de meio-século de um Estado inoperante. Por isso, a proposta de buscar uma entidade de proteção ao músico mediante a institucionalização é altamente significativa. Evidentemente, a institucionalização não garantirá êxito ipso facto. De qualquer sorte, é o caminho para tal finalidade.

Analogamente, o economista Celso Furtado propôs ideias fundamentais para o funcionamento das Superintendências. O fato de que a SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) e a SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) não tiveram o resultado almejado deve-se ao desvirtuamento de sua proposta, notadamente nos idos de 1970. Portanto, o malogro aparente não se deve às instituições em si, mas sim às pessoas responsáveis pela direção ao longo de vários governos despóticos e inerte às reivindicações sociais.

No âmbito da economia internacional, observa-se que os países que seguiram fortemente a economia neoclássica (com suas políticas neoliberais) reviram sua posição no século XXI. Além disso, os países que dominaram o cenário econômico e político mundial no século XX nunca foram tão liberais com sua economia, mas impuseram liberalismo para os outros países, eis uma das críticas da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). Apregoa-se que tais países estejam revendo seu resquício de liberalismo para quase zero. Ademais, observa-se um crescimento dos movimentos xenófobos, notadamente na Europa em virtude da recessão mundial. Desse modo, a desregulamentação não é saída para os problemas: é apenas “um tiro no pé”. O século XXI mostrou-nos que a liberalidade e a desregulamentação de mercado e de trabalho não foram favoráveis para nenhum país.
É importante ressaltar que o mercado de trabalho (inclusive o da música) não está favorável em nenhum lugar do mundo. A propósito, a Europa (grande exemplo da alta cultura) e os EUA estão com sérias dificuldades financeiras. Por mais que haja ingentes esforços para superar a crise, até o momento não foi possível vislumbrar uma saída para a crise, razão pela qual eu acredito que o mundo terá que passar por uma forte mudança de paradigma para continuar operando.
Distorção de mercado é algo cada vez mais comum hoje em diversas áreas. Os profissionais não exercem atividades relacionadas ao curso de graduação e é possível observar trabalhadores que são qualificados acima do cargo que ocupam (overqualified), em decorrência do crescente desemprego e da recessão econômica. Desse modo, não há como pensar em autoregulação para o mercado musical em virtude das altas distorções de mercado. Para que o mercado pudesse operar por autoregulação, seria necessário que vivêssemos em condições ideais, tais como: ausência de externalidades, concorrência perfeita, educação e cultura para todos os cidadãos, a fim de que pudessemos agir racionalmente e de forma crítica perante a sociedade. Portanto, há que se tratar os desiguais, no mínimo, de forma desigual.
Conforme é sabido, a América Latina não possui um histórico favorável ao investimento na área social, incluindo a cultura. No Peru, por exemplo, o Ministério da Cultura foi criado recentemente, o que gera muita expectativa e especulação sobre quais serão as linhas de atuação. Por outro lado, não há Ministério da Cultura nos EUA, uma vez que o mercado teria que se encarregar de tal atribuição, eximindo o Estado dessa tarefa. Todavia, é preciso lembrar que o mercado norte-americano é menos distorcido que o mercado latino, além da presença de inúmeras campanhas de doações (donations), as quais funcionam de forma satisfatória, contribuindo para o funcionamento das instituições norte-americanas e, por conseguinte, para o bem-estar social.
Quando as artes e as humanidades começam a ganhar a devida e merecida legitimidade acadêmica, inclusive pelos órgãos de fomento, os próprios músicos optam pela desregulamentação da profissão. Lembremo-nos que as artes bem como as áreas de humanidades sempre ficaram em segundo plano dos investimentos para parte dos órgãos de fomento. Por isso, é necessário mostrar a relevância da música. Contudo, muitos parecem fortificar um pensamento retrógrado quanto ao devido valor da música para a formação do indivíduo.

Tendo em vista que a música está regressando timidamente na grade curricular e uma vez que a música não está logrando se apresentar com seu devido valor, chegará um ponto que seria melhor selecionar um músico que toque por um preço irrisório mesmo que seja de má qualidade. Nesse contexto de falta de senso crítico, é bom evocar as sábias palavras do antropólogo Darcy Ribeiro para refletirmos: ...A escola não ensina, a igreja não catequiza, os políticos não politizam. O que opera é um monstruoso sistema de comunicação de massa impondo padrões de consumo inatingíveis, desejos inalcançáveis....”

CONCLUSÃO
A regulamentação profissional é dada por lei e não por órgão. Como a Lei 3.857/1960 (OMB) aparenta não ter sido recepcionada pela CF em virtude da argumentação do STF, o ocaso da OMB pode estar próximo. Preocupa-me o tipo de argumentação acerca do assunto por parte do governo e da opinião pública, pois notamos desprezo para com os instrumentistas que devem ter inúmeras horas de estudos e leitura com vistas a poder exercer a profissão.

Numa época em que se observa intensa distorção social, não é conveniente desregulamentar profissões, a não ser que a classe não se importe com o fato de que poderá não haver profissionais num futuro próximo. Nos tempos modernos, a regulamentação se mostra como um mal necessário, sobretudo para a classe musical que é altamente heterogênea. Para buscar a saída, é necessário debater as diretrizes para evitar ambiguidades e maiores fragmentações. A minoria da população brasileira talvez consiga ser um profissional da música por maestria, mas, provavelmente, não haverá profissional dependente financeiramente da atividade musical. É justamente a razão pela qual acredito que a argumentação do “risco social” é altamente reducionista.

Deveras, a classe musical é altamente fragmentada e desunida, mas a desregulamentação apresenta uma forte ameaça para a profissão musical no que tange à vida financeira. Perpetuar-se-á ideia de que a música serve apenas para lazer, não se atribuindo o devido valor e nem o cachê mínimo. Permanecerá o fardo social de que músico obrigatoriamente deve ter outra profissão para sobreviver, pois o músico (sobretudo o latino-americano) ainda é visto socialmente como um errante ordinário. Desse modo, é necessário tratar os desiguais de forma desigual.

Desse modo, a questão não reside no fato de apresentar ou não a carteira da OMB, mas sim o que isso implica socialmente. Nesse sentido, é necessário lembrar que as famílias estão cada vez mais receosas com o futuro dos filhos, pois, afinal, estamos numa época de excessiva perda de valores e desinteresse pelo conhecimento. Quanto mais houver desregulamentação profissões, mais receio será engendrado. Assim, é possível que menos profissionais entrem no mercado musical, agravando as distorções sociais.

Lamentavelmente, perpetua-se a politicagem e a falta de pensamento sistêmico de todas as áreas do conhecimento; mas ainda querem propagar que estamos na "era da multidisciplinariedade". De qualquer forma, acredito que todos tenham que fazer sua parte para a geração futura poder colher seus frutos. Visemos deixar bons filhos para o mundo e não somente deixar um mundo melhor para nossos filhos.

A única saída no longo prazo seria o investimento na educação de base, mas essa tarefa é muito difícil de ser levada a efeito pelo Estado. Na troca de governo, infelizmente, mudam a proposta e o nome dos programas sociais, o que torna moroso o investimento de fato na educação. Além disso, educação de base não concede votos para o governo, haja vista que os resultados são de longo prazo; eis a razão pela qual vivemos na era dos arremedos institucionais sem nunca atacar o mal pela raiz. Por isso, é necessário se ter em mente a diferença entre “estado” (que é permanente) e “governo” (que é temporário). Infelizmente, o Estado é confundido com governo e as metas institucionais nunca são alcançadas como deveria.

Creio que a saída do descaso social – incluindo o problema da classe musical – tenha que provir de baixo para cima. A constituição das partes constituirá o todo porque o Estado nunca dará conta desse encargo. A mudança do paradigma deverá partir dos lares de cada um e as boas ações deverão ser levadas a cabo por intermédio da família e do bom círculo de amizade. Temos que nos convencer de que podemos não mudar o mundo instantaneamente, mas seremos um ordinário a menos se fizermos nossa parte. Não deixemos perpetuar o "homem cordial" (S. B. de Holanda em Raízes do Brasil, 1936), cuja análise é mais contemporânea do que se pode imaginar.

Em que pese todos os problemas mencionados, não deixarei jamais de vincular-me à arte, pois conquistei profundas amizades independentes do tempo e espaço por intermédio da música, conectando culturas latino-americanas. De fato, música não é profissão, é simplesmente devoção... Só posso terminar evocando o maior compositor brasileiro:

Toda a minha filosofia se centraliza na música porque a música é a única razão, único motivo para a minha existência. Eu somente sou útil, de alguma forma, através da música. Se amanhã a música folclórica acabasse, desaparecesse da face da Terra, também eu poderia perfeitamente desaparecer. Mas não creio que a música possa jamais desaparecer, porque é um fenômeno biológico e não fisiológico. A música é tão útil como o pão e a água. A música é essencial porque representa uma válvula de escape para a humanidade. Nenhum povo pode viver sem a música, pela simples razão de que a expressão artística é de natureza vital para o progresso intelectual de um povo. Não é justo que se desprezem as manifestações espontâneas, bem populares, da vida diária de nossa nação. O petróleo e a eletricidade são úteis para movimentar as máquinas; a música movimenta as almas
 
(VILLALOBOS apud MACHADO, M.C. Heitor VillaLobos: tradição e renovação na música brasileira . Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987).

[1]
Na América Latina, com exceção do Brasil e notadamente na Argentina, é muito comum utilizar a palavra “guitarrero” para aqueles que tocam violão de uma maneira intuitiva e com pouco estudo. “Guitarrista”, em espanhol, seria aquele que toca com um pouco mais de conhecimento e estudo técnico.

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